Fatal Frame, DreadOut, MADiSON… Mas afinal, qual é o problema dessas câmeras?

Nos anais sombrios da cultura asiática, onde lendas de espíritos vingativos e rituais antigos existem há gerações, um objeto aparentemente inofensivo ganhou um lugar de destaque no imaginário do terror: a câmera.
Seja analógica, com seus rolos de filme que capturam mais do que o olho humano pode ver, ou digital, com telas que revelam vultos indesejados, a câmera tornou-se um portal para o sobrenatural em jogos como Fatal Frame, DreadOut e MADiSON.
Mas por que esse dispositivo, tão comum no dia a dia, carrega um peso tão macabro nessas histórias?
O clique que desperta o além
No Japão, a crença de que imagens podem capturar a essência de uma pessoa ou lugar é antiga. Fotografias, em especial, são vistas como algo mais do que meros registros visuais; elas podem prender almas, preservar memórias de tragédias ou até servir como pontes para o mundo espiritual.
Essa ideia ganhou força no folclore japonês, onde histórias de objetos amaldiçoados, como espelhos ou bonecas, são comuns. A câmera, com sua capacidade de “congelar” um momento, tornou-se um veículo pure para essas lendas.
Não é à toa que Deadly Body, lançado em 2001 pela Koei Tecmo, escolheu a Digital camera Obscura, uma câmera fotográfica fictícia com poderes exorcistas, como arma principal contra fantasmas.
A protagonista Miku Hinasaki, ao entrar na mansão Himuro em busca de seu irmão, descobre que cada clique da câmera pode revelar espíritos e, em alguns casos, bani-los. A tensão está no ato de enquadrar o espectro, sabendo que ele pode reagir de forma violenta.

Essa premissa não é apenas um artifício de jogabilidade. Ela reflete uma crença cultural profunda: a de que capturar uma imagem pode perturbar o equilíbrio entre os mundos dos vivos e dos mortos.
Makoto Shibata, diretor de Deadly Body, revelou em entrevistas que sua infância foi marcada por experiências sobrenaturais, como “presenças” que sentia à noite perto de sua casa. Essas vivências moldaram a série, que mistura folclore japonês, como o Ritual de Estrangulamento da mansão Himuro, com a ideia de que a câmera é um objeto de poder e perigo.
A mansão, supostamente inspirada em um native actual nos arredores de Tóquio, reforça a aura de “baseado em fatos reais” que a Tecmo usou para atrair jogadores no ocidente, intensificando o impacto psicológico que a franquia de jogos propõe.
Da Indonésia ao digital: o terror se moderniza
Se Deadly Body explora a câmera analógica como um artefato quase místico, DreadOut, lançado em 2014 pela indonésia Digital Happiness, leva essa ideia para o mundo digital.
Ambientado na Indonésia, o jogo apresenta Linda, uma estudante que, durante uma viagem, acaba em uma cidade amaldiçoada. Armada com um smartphone, ela usa a câmera do aparelho para enxergar e combater espíritos baseados na mitologia native, como a Kuntilanak, uma figura fantasmagórica ligada a mulheres que morreram durante a gravidez.
A escolha de um smartphone reflete a modernização do horror: enquanto a Digital camera Obscura de Deadly Body resgata elementos do passado, o dispositivo de Linda é algo que qualquer jogador poderia carregar no bolso, tornando o terror mais próximo e imediato.

A mitologia indonésia, com suas criaturas sobrenaturais pouco conhecidas no ocidente, dá a DreadOut um sabor único. A câmera digital, com sua interface acquainted, aumenta a sensação de vulnerabilidade: o jogador precisa mirar com precisão, mas a tela pequena e a bateria limitada criam uma tensão constante.
Essa abordagem também dialoga com a cultura contemporânea, onde selfies e vídeos virais podem, acidentalmente, capturar algo que não deveria ser visto. A inspiração em Deadly Body é clara, mas DreadOut adiciona uma camada de exotismo ao explorar lendas locais, mostrando como a câmera, mesmo em sua forma moderna, continua sendo um portal para o desconhecido.
MADiSON e a câmera como testemunha
Em MADiSON, lançado em 2022 pela Bloodious Video games, a câmera volta a ser protagonista, mas com uma abordagem mais psicológica. O jogador controla Luca, um jovem preso em uma casa assombrada, onde uma câmera Polaroid é a chave para desvendar mistérios e sobreviver a encontros com a entidade Madison, uma assassina sobrenatural.
Diferente de Deadly Body e DreadOut, onde a câmera é uma arma, aqui ela funciona como uma ferramenta de investigação. Cada foto tirada pode revelar pistas, abrir passagens ou desencadear eventos aterrorizantes, como vultos que se movem no canto da imagem.
A Polaroid, com seu flash e o som característico do filme sendo ejetado, cria uma atmosfera de suspense, onde o ato de fotografar é tanto um risco quanto uma necessidade, independente de onde você esteja… ou com quem.

A narrativa de MADiSON se inspira em jogos como P.T., o teaser cancelado de Silent Hills, mas a câmera Polaroid remete a uma estética retro que vai de oposição aos horrores modernos. O jogo explora a ideia de que a câmera não apenas registra, mas também “vê” o que o olho humano ignora, conectando o jogador a um ritual demoníaco.
Essa abordagem reforça a noção de que a câmera é um objeto de transgressão, capaz de violar as barreiras entre o físico e o espiritual. A casa de MADiSON, com seus corredores claustrofóbicos e objetos do cotidiano, reflete conceitos criados pelo horror doméstico, um tema recorrente no terror asiático, mas adaptado para um contexto ocidental.
O cinema e a maldição das imagens
A conexão entre câmeras e maldições não se limita aos videogames. No cinema asiático, filmes como Ringu (1998) e Ju-On: O Grito (2002) estabeleceram o horror japonês (J-Horror) como um gênero world, usando objetos do cotidiano, como fitas VHS e casas, como meios das maldições.
A Tailândia também contribuiu com Espíritos: A Morte Está ao Seu Lado (2004), onde um casal descobre que fotografias revelam a presença de um espírito vingativo. A trama, centrada em imagens que mostram vultos ou anomalias, traz muitas referências à mecânica de Deadly Body e antecipa a ideia de DreadOut, onde a câmera é tanto uma testemunha quanto uma provocadora do sobrenatural.
Esses filmes reforçam a crença de que registrar algo pode atrair a ira de forças invisíveis, uma ideia que anda ao lado do folclore asiático.

Deadly Body também inspirou uma adaptação cinematográfica japonesa em 2014, intitulada Zero: The Film. Embora menos conhecida no ocidente, a produção captura a essência do jogo, com uma trama centrada em uma vila isolada e lendas locais.
O filme utiliza o subgênero do folks horror, comum no terror asiático, para explorar a repressão emocional e a espiritualidade, temas que se destacaram na série de jogos. A câmera, mais uma vez, é o fio condutor e reforça sua dualidade como ferramenta de descoberta e destruição.
Por que a câmera assusta tanto?
A obsessão com câmeras amaldiçoadas nos jogos e no cinema asiático vai além de um simples dispositivo narrativo. Ela toca em medos universais: o de ver algo que não deveria ser visto, o de perturbar o que deveria permanecer intocado.
No Japão, onde o xintoísmo atribui espíritos a objetos e lugares, a câmera pode ser vista como uma extensão do olhar humano, mas com um poder perigoso de atravessar véus espirituais.
Na Tailândia e na Indonésia, onde crenças animistas e budistas se misturam, a fotografia pode capturar energias negativas ou ofender entidades sobrenaturais. Esses contextos culturais dão às câmeras uma aura de tabu, transformando-as em símbolos de transgressão.

Nos videogames, a interatividade torna esse medo ainda mais profundo. Diferente do cinema, onde o espectador é passivo, jogos como Deadly Body, DreadOut e MADiSON colocam o jogador no controle da câmera e o forçam a confrontar o horror de perto.
O ato de mirar, focar e disparar o obturador é carregado de tensão, pois cada foto pode revelar um novo perigo. Essa mecânica, combinada com narrativas ricas em folclore, cria uma experiência imersiva que ressoa com o público world, mesmo que as lendas sejam específicas de suas culturas de origem.
Um outro mundo visto pelas lentes
A jornada das câmeras amaldiçoadas começou com Deadly Body, que transformou um objeto cotidiano em uma arma contra o sobrenatural, inspirando jogos como DreadOut e MADiSON. Esses títulos, cada um com sua abordagem única, mostram como o horror asiático continua a evoluir, misturando tradição e modernidade.
O cinema, com filmes como Espíritos e Zero: The Film, complementa essa narrativa, enquanto séries animadas como Yami-Shibai. anime de antologias baseado em histórias de até cinco minutos, mantêm viva a tradição de contar histórias de fantasmas.
O que torna essas câmeras tão assustadoras é sua capacidade de revelar o invisível, de tornar o intangível palpável. Elas nos lembram que, em um mundo cheio de tecnologia, ainda há mistérios que escapam à nossa compreensão – e que, às vezes, é melhor deixar a lente tampada.
Então, da próxima vez que você pegar sua câmera ou apontar o celular para uma foto, cuidado: o que aparecer no visor pode ser mais do que você esperava.